Pois é… Eu sempre gostei de Monteiro Lobato (por “sempre” eu quero dizer “desde os meus 10 anos, mais ou menos”). Eu me lembro que na cidade em que estudava eu tinha acesso a três bibliotecas. Uma era a da escola que, ao menos na minha perspectiva, era gigante. A outra ficava no Instituto Bíblico Maranata, onde nossa família morava e meus pais estudavam. A terceira era a biblioteca da cidade, que não me parecia tão grande quanto as outras duas, mas tinha uma coisa que elas não tinham: Monteiro Lobato. Na verdade, na minha visão aquela biblioteca era toda de Monteiro Lobato porque era a única coisa que me interessava ali. E foi assim que eu o conheci.

Na verdade, dizer que eu “o conheci” não é exatamente o sentido correto de explicar. Porque eu não tinha quase nenhum contato com ele. A sensação que eu tenho é que ele era aquela pessoa que nos dava as boas vindas e abria a porteira logo que a gente chegava na entrada do Sítio. E só. Lá dentro, sentada na cozinha saboreando uns quitutes enquanto ouvia uma história da Tia Nastácia, ou passeando pelo sítio na companhia das crianças e da espivetada da Emília, ou partindo dali para algum reino encantado, Monteiro Lobato sequer existia. Em todo caso, o nome dele ficou, para mim, associado à leveza alegre e colorida do Sítio do Picapau Amarelo.
Isso até alguns anos atrás, quando um dos meus alunos vem me perguntar se eu sabia que Monteiro Lobato tinha escrito uma carta ao presidente (na verdade se tratava de Júlio Prestes, ainda candidato) incentivando o investimento na questão de extração do petróleo. Isso me deixou surpresa (quase chateada, pra dizer a verdade, porque não achava que ele fosse tão real assim), mas não cheguei a investigar muito o assunto.
O consolo, no entanto, chegou com a minha descoberta de ontem. Escrevendo um material sobre a trajetória da arte até se tornar o que é hoje, encontrei o que para mim foi um verdadeiro tesouro. (Se vocês não acharem nisso nenhuma novidade peço desculpas pela empolgação). Acontece que em 1917 a artista Anita Malfatti fez uma exposição com algumas características da moda que tinha aprendido na Europa moderna: pinturas com imagens distorcidas, tons fortes e aqueles indícios de que a arte já não buscava retratar a vida como ela é, nem seus ideais, nem as impressões que se tinha dela, mas uma expressão do “eu” do próprio artista.
Pois bem. A questão é que eu não sabia que uma das pessoas que foi lá para conferir a tal exposição era o nosso amigo Monteiro Lobato. Muito menos sabia que ele havia escrito um artigo no jornal O Estado de São Paulo sobre isso (até porque jamais poderia imaginar que ele sairia do mundo do Sítio ver uma exposição dessas, nem que ele fosse dessa época e muito menos que já existia esse jornal). Mais admirada ainda fiquei ao ler uma frase em que ele, se opondo a essa tendência, dizia:
“Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em “pane” por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que do bichano fizer um “totó”, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes”.
- Foto da página do jornal daquele dia
Fui atrás do tal artigo e descobri um outro Monteiro Lobato que eu sequer sonhava que existisse. Primeiro me impressionei por concordar muito com a opinião que ele apresenta sobre essas tendências da arte moderna. Depois por perceber que o texto não era simplesmente sobre isso, mas sobre a inteligência, a dignidade, o respeito ao outro (inclusive à artista) e o valor da vida. Então segue abaixo o texto na íntegra, caso alguém se interesse em ler. No final tem o link para o acervo do jornal onde tem essa imagem do artigo. (A escrita daquele tempo era um pouquinho diferente, por isso adaptei a ortografia).
******
A propósito da exposição Malfatti
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
Embora eles se deem como novos, precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto lógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.
Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em “pane” por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que do bichano fizer um “totó”, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.
Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um sem número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de quem sai de uma destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denunciam as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de racionar, e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para “épater les bourgeois”[1]. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta. No fundo riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos.
Arte moderna, eis o escudo, a suprema justificação. Na poesia também surgem, às vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira nata de certos poetas elegantes, apesar de gordos, e a justificativa é sempre a mesma: arte moderna. Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso “virtuose” do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas, e dos corpos femininos em botão. Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da “dry point” que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.
Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua escola o trabalho de um mestre americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em movimento. Está ali entre os trabalhos da Sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra prima, julgue o público do resto tomando-me a mim como ponto de referência.
Tenhamos coragem de não ser pedantes: aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O Sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pés, fechou os olhos, e fê-lo passar na tela às tontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado foi absolutamente o mesmo. Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando a tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclama pelos mistificadores como verdadeira obra prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado. A pintura da Sra. Malfatti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o Sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insígnes cavalgaduras, a coorte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a Stevens, de Velásquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou… vice-versa. Porque é de todo impossível dar o nome da obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro, de Chabas, e o carvão cubista do Sr. Bolynson.
Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o formoso talento da Sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis.
Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética.
Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chanmente[2], sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo[3] de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem sempre amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na Sra. Malfatti apenas uma “moça que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos “bombons”, que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e… dos seus apologistas.
Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo… por trás.
Monteiro Lobato
20/12/1917
___________________________________
[1] “Elogiar os burgueses”
[2] De modo franco, sincero.
[3] Vício repreensível
Link: http://brasil.estadao.com.br/blogs/arquivo/a-proposito-da-exposicao-malfatti-por-monteiro-lobato/