O silencioso grupo que mudou a história de um país

Essa história aconteceu em um reino distante cujo rei legítimo fora deposto por um impostor que ocupou seu lugar no trono. O coração daquele rei intruso era cheio de propósitos obscuros: a cobiça pelo poder e o orgulho que o movia a trabalhar com afinco para destruir tudo o que fora criado pelo verdadeiro soberano.

Cada época sofre suas próprias mazelas; cada povo conhece seus próprios pesares. Alguns sofrem o terror das guerras, outros conhecem a dor da fome; alguns vivem os horrores das pragas e calamidades, outros padecem sob o punho de ferro dos tiranos e maus. E em meio às tragédias dramáticas muitas pessoas descobrem a sua força, resgatam suas raízes e reconstroem a vida.

Mas o povo daquele país conheceu uma dor silenciosa. Lenta e sutilmente o usurpador trabalhou para minar as bases mais profundas do interior de cada súdito. E conforme se destruía o conceito de integridade a injustiça nascia. Corroía-se o princípio de dignidade e assim proliferava a violência. Extinguia-se a gratidão e pouco a pouco os corações se endureceram. Perdeu-se o amor ao belo, ao verdadeiro, ao que é bom. Alguns caminhavam apáticos enquanto outros tornavam-se agressivos e rebelavam-se contra tudo e todos; os demais passaram a uma busca desenfreada por prazeres intensos que os fizesse esquecer, ao menos por alguns instantes, o vazio do nada ser.

Mas foi então que algo inesperado aconteceu!

Em uma manhã fria, pouco antes do nascer do sol, desembarcou no país um homem de vestes simples e postura humilde. E embora parecesse alguém comum, seu olhar apresentava uma profundidade tão serena e grandiosa que uma criança que passava por ele deteve-se a admirá-lo por tanto tempo que a mãe precisou tomar sua mão para que retomasse o caminho. Era o rei verdadeiro que voltava ao seu país disfarçado com a missão de restaurar a vida naquele lugar.

Aos poucos, mensagens secretas eram levadas e aqui e ali os olhos se abriam espantados ao ouvir a notícia: ele estava de volta!

É verdade que naquele tempo muitos já não se lembravam da aparência do verdadeiro soberano, tão pouco de como eram suas leis e seus conselhos. Mas havia entre o povo aqueles que insistiram em contar uns aos outros a história daquela nação para manter viva em seus corações a memória de quem eles de fato eram.

E assim, em uma noite escura, quando as estrelas já brilhavam no céu, um a um eles foram chegando ao lugar combinado para ouvir o que o rei tinha a lhes dizer. Em meio ao silêncio sua voz ressoou clara e forte:

“Meu querido povo! É chegado o tempo de retomarmos o nosso país!”

Ao ouvir isso cada um deles sentiu seu coração arder em um misto de alegria, esperança e entusiasmo! Não podiam gritar, mas se abraçavam com sorrisos e olhar de euforia.

“Como será, Majestade?” – disse, agitado, um homem valente. “Quando começaremos a guerra? Precisamos preparar as armas, precisamos convocar os mais fortes! Estamos prontos! Vamos começar!”

“Não será assim, filho” – respondeu o rei com a mesma tranquilidade. – “Não foi por meio da guerra que este país foi assolado e não será pela guerra que ele será retomado.”

“Mas… Mas, Majestade… Precisamos derrubar do trono aquele usurpador!”

“Este tempo chegará. Mas ainda não. Quando as raízes da árvore estão adoecidas, de nada servirá tentar ajeitar seus galhos e lustrar seus frutos. É preciso trabalho muito maior para restaurar a saúde da planta para que outra vez sua folhagem seja vicejante e seus frutos sejam doces.”

“E o que devemos fazer, senhor?”, perguntou uma jovem mulher que estava em um dos cantos da sala segurando nos braços o seu bebê que dormia tranquilo.

“O trabalho será silencioso, árduo e lento. Se vocês esperam ver um dia uma cidade reerguida, precisarão começar trabalhando nos alicerces das suas próprias casas. Desde o baú mais bem guardado, tudo precisará ser aberto, limpo e restaurado. Cada lâmpada deverá ser consertada e polida, cada roupa velha deverá ser posta fora. As janelas deverão ser reparadas e as paredes lixadas e pintadas. O jardim será revolvido e novas sementes serão plantadas e cultivadas até que suas plantas floresçam cheias de cor e de vida. Quando cada casa estiver pronta, então a cidade estará preparada para receber novamente o seu rei.”

O silêncio foi tão grande que se pode ouvir pio de uma coruja que ponderava sobre a noite lá fora. Aquelas palavras não eram, em nenhum aspecto, o que as pessoas ali reunidas esperavam ouvir.

“Mas…” – ainda tentou uma outra jovem – “com todo o respeito, senhor, não vejo por que razão nos limitaríamos a ficar cuidando de nossas casas quando somos fortes o bastante para lutar e assumir o comando do país.”

O rei olhou para aquela jovem por um instante. Embora julgasse que o antigo monarca era agora um covarde, tamanha imponência transpareceu em seu semblante que ela abaixou seus olhos envergonhada.

“Minha filha… Seus ouvidos cresceram acostumados à voz daqueles que nada conhecem sobre a verdadeira coragem. É preciso maior força para lutar contra si mesmo do que aquela necessária para pegar em armas e combater um inimigo. Porque as batalhas sangrentas são vencidas no furor de um momento, mas os verdadeiros guerreiros são aqueles que não desistem de lutar as inúmeras batalhas que acontecem todos os dias em seus próprios corações. Nunca lute para ter a admiração daqueles que não podem ver quem você verdadeiramente é. Nunca fuja das batalhas que só você pode lutar.”

Uma lágrima correu pelo rosto da jovem enquanto em sua alma reacendia uma antiga chama.

“Não fugirei, Majestade! Eu trabalharei incansavelmente até que minha casa esteja preparada!”

Aqui e ali algumas pessoas se levantaram e aproximaram-se do rei dispostos a atender à vocação que recebiam. Os demais aproveitaram o momento para se esgueirarem de mansinho até a porta e foram embora reclamando entre si que o rei não era mais o mesmo. “Um dia, quem sabe, – eles cogitavam, “chegará um rei mais forte que dominará o trono e resolverá tudo sem essa história de mudar a nós mesmos. O que ele sabe sobre nossas casas? Com tanto problema no mundo quem é ele para vir julgar nossas vidas?”

Mas o pequeno grupo que ali permaneceu estava decidido a trabalhar.

De volta às suas casas eles passaram a ocupar-se em atividades que aos olhos dos demais pareciam banais. Eles limpavam, organizavam, cozinhavam e plantavam… Não preocupavam-se com o elogios dos desconhecidos, não tentavam parecer superiores aos demais, não gastavam seu tempo comentando sobre a vida alheia… Muitas vezes se sentiam cansados e desanimados, mas a cada encontro com o antigo rei renovavam-se as suas forças e a certeza de que era grandioso o propósito pelo qual agora viviam.

Pouco a pouco as pessoas começaram a perceber que havia alguma mudança no ar. O rei impostor sentia que estava acontecendo algo que ameaçava seu poder, mas não sabia dizer o que era.

“Algo está acontecendo! Tomem providências!!” – gritava ele aos seus conselheiros. Mas eles também não sabiam o que estava acontecendo.

Uma beleza suave trazia frescor às ruas da cidade. Flores coloridas e graciosas nasciam nas jardineiras das janelas brancas por onde saia o aroma de pães e bolos assados a cada tarde para ser compartilhado com os vizinhos.

As crianças daquelas famílias, agora acostumadas a limpar e embelezar o lugar que lhes pertencia, viviam recolhendo o lixo das ruas e regando as plantas enquanto seus pais trabalhavam consertando os bancos da praça e arrumando as pedras que cercavam o jardim.

No final do dia, antes do pôr-do-sol, as famílias reuniam-se naquela praça para conversar, encorajar umas às outras e ouvir um poema recitado por um garotinho ainda pequeno, uma música suave que uma mocinha tocava em sua flauta ou a leitura de um texto sagrado que um jovem encontrara em seus livros.

Tudo aquilo que havia sido feito por tanto tempo silenciosamente no interior de cada casa, agora contagiava outros que sentiam-se inspirados a trabalhar por isso também. E aos poucos aqui e ali a esperança ressurgia renovando as mentes antes obscurecidas pelos maus conselhos.

O tempo passou e as crianças cresceram tornando-se jovens sábios e bons que amavam fazer o que era certo e eram inteligentes em suas argumentações com aqueles que tentavam convencê-los a escolher os caminhos errados. A forma como aqueles jovens falavam e se portavam impressionava a todos e eles passaram a ser contratados para funções importantes no país. E ali, silenciosa e dedicadamente eles trabalhavam imitando a integridade, mansidão e sabedoria que haviam aprendido com seus pais.

Os homens e mulheres daquele pequeno grupo sentiam-se profundamente gratos por aquela noite em que atenderam à vocação do antigo rei. Não sabiam quando ele finalmente assumiria o trono, mas permanecia a certeza de que enquanto isso havia muito a se fazer, com empenho, simplicidade e perseverança, para mudar aquele país e escrever uma nova história.

Escrita por Katarine Jordão

Abril/2019

Inspirado em uma frase de C. S. Lewis do livro Cristianismo Puro e Simples

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